“À noite e aos domingos ainda mais recrudescia o seu
azedume, quando ele, recolhendo-se fatigado do serviço, deixava-se ficar
estendido numa preguiçosa, junto à mesa da sala de jantar, e ouvia, a
contragosto, o grosseiro rumor que vinha da estalagem numa exalação forte de animais cansados. Não podia chegar à janela sem
receber no rosto aquele bafo, quente e
sensual, que o embebedava com o seu fartum de bestas no coito”.
“Também cantou. E cada verso que vinha da sua boca de mulata
era um arrulhar choroso de pomba no cio.
E o Firmo, bêbedo de volúpia, enroscava-se todo ao violão; e o violão e ele gemiam com o mesmo gosto, grunhindo, ganindo, miando, com todas as
vozes de bichos sensuais, num desespero de luxúria que penetrava até ao
tutano com línguas finíssimas de cobra”.
“E o mugido
lúgubre daquela pobre criatura abandonada antepunha à rude agitação do cortiço
uma nota lamentosa e tristonha de uma
vaca chamando ao longe, perdida ao cair da noite num lugar desconhecido e
agreste”.
“Sentia-se naquela fermentação
sanguínea, naquela gula viçosa de
plantas rasteiras que mergulham os pés vigorosos na lama preta e nutriente
da vida, o prazer animal de existir,
a triunfante satisfação de respirar sobre a terra”.
“Mas desde que Jerônimo propendeu para ela, fascinando-a com
a sua tranquila seriedade de animal
bom e forte, o sangue da mestiça reclamou os seus direitos de apuração, e
Rita preferiu no europeu o macho de raça
superior”.
Esses são trechos de “O Cortiço”, de Aluísio Azevedo, obra
que estamos analisando durante o mês de janeiro.
Você percebe algo em comum nesses trechos? Nas partes
destacadas em itálico?
Há uma “animalização” dos personagens. Os habitantes do
cortiço exalam o cheiro de animais. Rita Baiana arrulha como uma pomba. Firmo geme, grunhe, gane, mia junto com seu instrumento. Uma mulher muge. Os movimentos, os cheiros, os sentidos, as cores, os
sons, tudo parece se referir a animais, não a pessoas.
Essa animalização dos personagens é uma das características
do Naturalismo literário. Fruto da segunda metade do século XIX, o Naturalismo
tinha como um de seus atributos uma
visão
determinista. Isso quer dizer que o Naturalismo considerava o homem um ser
sujeito a seus instintos, ao meio onde vivia e à hereditariedade. Como um
animal.
Os autores do Naturalismo partiam do princípio de que as
atitudes humanas podiam ser explicadas pela ciência, de forma extremamente objetiva.
Essa visão determinista tem origem no Determinismo: uma
teoria filosófica que afirma a existência de três fatores determinantes no
comportamento humano: o meio-ambiente, a raça e o momento histórico. Tal teoria
não é criação de um único filósofo, mas um de seus expoentes é o francês Hippolyte
Taine (1828 – 1893).
Dessa forma, pensando n’O Cortiço, as atitudes de João
Romão, Jerônimo e demais personagens do romance seriam ditadas pelo meio. Todos
agiriam por instinto, a partir de características herdadas pelo sangue, hereditárias.
É quase uma falta de livre-arbítrio: faz-se o que o meio manda, na base do
instinto, praticamente sem alternativa a não ser obedecer...
É por isso que algumas análises dessa obra apontam o próprio
cortiço como um personagem da história, já que, mais do que o local onde se
desenrolam as ações, ele seria o ambiente que determina essas ações.